Olá,
Aquele filme.
Podia falar da excelente fotografia, da realização, do
desempenho extraordinário dos actores (a Nicole Kidman está sublime), ou do
enredo. Talvez do enredo. A forma como a Anna e todos nós somos enredados na
crença de uma verdade em que queremos acreditar. O twist final é desconcertante.
Depois, todo o filme feito de silêncios que dizem tanto. A música.
Logo após o miúdo desmaiar e na sala de espetáculos o plano da
Nicole Kidman está divinal. Tanto que diz só com a expressão facial, com os
olhos. A revelação. O nascimento da dúvida. O despertar. A dúvida como raiz da
fé. O assombro.
Comecei a ver o filme à noite. Ia ver só o início, já era
tarde, acabei por vê-lo todo. A noite segui-me pesada parecendo que tinha
dormido uma vida inteira e acordado noutra.
Tenho um problema de fé. E no entanto uma necessidade insana
de procurar por algo que dê um sentido, se não ao mundo, à minha presença nele.
O que é também uma forma de dar sentido ao mundo. Porque tudo está em tudo. São
raríssimas as coisas que não questiono. Felizes aqueles que acreditam…
Há coisas em que vou acreditando cada vez menos. Mas a
experiência da vida também me tem vindo a fazer duvidar da minha própria
dúvida.
Karma. Dharma. Atma.
Quando comecei a criar a minha própria concepção de vida, a
reencarnação era algo do domínio de uma certa fantasia, um exotismo ilusório de
querermos acreditar que nem tudo termina com a morte física do no nosso corpo.
A reencarnação era tão fantasiosa como a ressurreição de Jesus, ou a aparição da
virgem Maria aos pastorinhos. Um folclore criado como estratégia de marketing
para garantir seguidores, ou na melhor das hipóteses uma inocente ilusão que
nos conforte a existência terrena. E no entanto…
Quando era pequeno costumava fazer uma coisa: fixava-me ao
espelho, concentrado apenas em mim próprio, no meu nome, na minha identidade. E
de repente era como se nada disso fizesse sentido. Como se o meu reflexo fosse
a imagem de um estranho, aquele espaço fosse outro lugar, como se o tempo
parasse, ou melhor fosse todo o tempo naquele instante. E ai tive um primeiro
vislumbre que somos mais do que o que nos anima a carne que habitamos. Mas
ainda assim, queria negar que esta alma pudesse manter-se. Esta
energia dissipar-se-ia assim que expirasse o último ar dos pulmões e mais
nenhum entrasse. Como se para provar que algo existe tivesse que negar
incessantemente o seu contrário. E quando finalmente sentes que não há mais
nenhuma negação possível, encontras a verdade. Que é também ela própria
ilusória, relativa, impermanente.
Hoje acredito que existem almas em níveis distintos de
maturidade. Não tem a ver com inteligência, conhecimento adquirido, ambiente
civilizacional em que cresceram ou qualquer outro aspeto. O que nos anima é
diferente de pessoa para pessoa. Existem existências num estágio muito mais
elevado, seja num pedinte, ou num erudito. E outras mais atrasadas. Existe algo
que trazemos connosco que não foi apreendido. Já existia antes.
E existe algo não explicável, que não consigo identificar,
não consigo racionalizar. Que chama. Que liga. Um laço indestrutível porque não
se rege pelas leis da física, do espaço, do tempo.
O Sean não podia ser o Sean porque amava a Anna. Não sei se
o Sean era o Sean. Ou a Anna era a Anna. Se calhar foram sem serem Sean nem
Anna. Simplesmente foram, são e serão, independentemente do corpo e do tempo em
que habitam. Ou então é apenas aquilo que escolho acreditar.
Sou sempre.